Para os viajantes de plantão, estes são tempos de viagens suspensas, o que não é sinônimo de ficar parado. Sempre podemos recorrer a outros meios que nos deslocam no espaço e até mesmo no tempo. Vivemos o momento de planejar, de sonhar, de imaginar, de percorrer livros (tantas são as narrativas de viagem! Além do mais cada livro é, em si, uma viagem) e, por que não, de relembrar? Este texto é um convite a viajar por lembranças, fotografias e narrativas... Bem-vindos a bordo!
Ainda não sou a viajante que gostaria e que, um dia, espero ser, mas acredito que a ida a Montevidéu, em outubro de 2015, contribuiu para minha busca. Essa foi a primeira viagem internacional que fiz. Fui até lá acompanhando um grupo da faculdade que iria participar de um evento acadêmico na Universidad de la Republica.
Assim que cheguei ao país, desembarquei no Aeroporto de Carrasco, nos arredores da capital uruguaia. Já me encantei no caminho percorrido de van até o centro da cidade: clima frio (para os meus parâmetros, ameno para outros), vento forte, belas construções arquitetônicas (antigas e modernas), casas sem cercas ou muros e música brasileira (sim, eles amam!). Lembro de me sentir em casa quando ouvi a voz da Rita Lee tocar na rádio ainda antes de chegar ao hotel.
Quem espera encontrar em Montevidéu uma capital super movimentada e com ritmo frenético, pode se frustrar. Em lugar disso, nossa vizinha é acolhedora, charmosa e, guardadas as devidas proporções, tranquila. Se o coração da cidade é a Praça da Independência, onde se localiza a estátua e o mausoléu de general Artigas e o conhecido Teatro Solís (que, infelizmente não tive a oportunidade de conhecer), sua principal artéria é a famosa Avenida 18 de Julho, que vai desembocar na praça.
Ao longo dessa avenida, vemos a cidade respirar em pleno ritmo e vivacidade. Aí fica o prédio da “Intendencia de Montevideo”. No 22º andar fica um mirante a partir do qual é possível ter uma espetacular vista da cidade, com destaque para alguns pontos turísticos e para o rio da Prata. Indissociável daquele povo e de sua cultura, o rio se inscreve na história e nos costumes do Uruguai.
Também na Avenida 18 de Julho fica a “Fuente de los candados” ou Fonte dos cadeados. Reza a lenda que se aí for colocado um cadeado com as iniciais de duas pessoas que se amam, elas um dia retornarão a esse lugar (juntas) e seu amor durará para sempre. Parece que prender cadeados em fontes, pontes ou murais é algo relativamente comum em alguns lugares do mundo, como a Casa de Julieta, em Verona, a “ponte do amor”, em Helsinki, ou o corrimão das escadarias do monte Huang, em Huangshan (China).
Montevidéu apresenta traços característicos da urbanização espanhola (pelo menos na sua região central),sendo muito arborizada e dividida em quadras, ideal para aqueles que gostam de se aventurar a pé. Impossível descrever a sensação de liberdade e estranhamento ao caminhar sozinha nas ruas de uma cidade estrangeira pela primeira vez! Passear por feiras, olhar dentro de portas que parecem não oferecer nada e, de repente, ser surpreendida com o que poderia ser a menor das coisas, mas que naquele momento se torna uma descoberta fantástica...Como a vitrine de uma loja, em Colônia do Sacramento (vou falar dessa cidade mais adiante):
(Fonte: Sofia Glória)
No cartaz da vitrine de uma loja de roupas estava escrito “No sabía que ponerme y me puse feliz!!”. Até hoje não consegui uma tradução satisfatória para o português, então quem se aventurar a fazer isso e quiser compartilhar, comente aí!
Fiquei hospedada em um hotel com excelente localização, a algumas quadras da encantadora e muito frequentada Praça Fabini, por sua vez localizada na Avenida 18 de Julho. Um aspecto super interessante dessa praça é que além de seus atrativos estéticos e sua localização privilegiada, existe uma galeria de arte subterrânea que pode ser visitada gratuitamente, o Centro de Exposiciones SUBTE. Quando o visitei estava em cartaz uma exposição de arte contemporânea.
A praça conta com uma pequena e simpática livraria, que vista de fora não parece mais do que uma despretensiosa banca de jornais e revistas. Numa de suas paredes externas havia uma ilustração que atraía o meu olhar todas as vezes que passava por ali. Mais tarde descobri que essa ilustração era a capa de um livro do artista Gervasio Troche, Desenhos invisíveis. Quem me conhece sabe que a história terminou comigo comprando o livro rsrs. Outro saldo da ida à livraria foi conhecer Idea Vilariño, importante nome da poesia uruguaia.
Desembarcamos no Uruguai na noite de um sábado. No domingo, andamos até a “Ciudad Vieja”, centro histórico de Montevidéu que abriga sobrados antigos, bares, restaurantes, museus, a Catedral Metropolitana e a região portuária. Chegamos, assim, ao imperdível Mercado do Porto, pólo gastronômico cuja especialidade é a parrilla. Esse prato é característico da região do rio da Prata, sendo sua origem reivindicada por uruguaios e argentinos. Trata-se de carnes assadas de um modo diferente do que se faz no churrasco brasileiro. Na parrilla a peça não é atravessada por espetos nem tampouco entra em contato direto com a fumaça do carvão ou da lenha, o que segundo os especialistas, preserva o sabor natural da carne.
Vários restaurantes oferecem o prato num ambiente agradável, climatizado (como eu disse, fazia frio), onde se pode vivenciar a experiência de estar naquela cidadeespecífica. Eu, particularmente amo esses mercados: o burburinho de pessoas passando por todos os lados, os aromas, os sabores, as cores, tudo isso me transmite a sensação de sentir a vida pulsando enquanto também a observo, tudo isso faz com que eu me sinta parte do lugar. Provei a parrilla acompanhada por um bom vinho, que, aliás é o que não falta por lá... Já que falamos de mercado, outra opção interessante é o Mercado Agrícola de Montevidéu, que guarda outros sabores do Uruguai. Lá é possível encontrar alimentos frescos, temperos, restaurantes e cafés. É um pouco afastado do centro, mas vale muito uma visita!
Além da famosa parrilla, pude experimentar outros dois pratos com contornos bem uruguaios: o chivito, um tipo enorme de sanduíche que pode ser servido com pão (“chivito al pan”) ou sem (“al plato”). O que eu comi era realmente grande e sem pão. Suas diversas camadas são compostas por carne feita na chapa, alface, ovo, bacon, tomate, presunto, muçarela, batatas fritas e maionese (aquela com batatas, não é o molho). Mas o queridinho da vez é o “choripan” ou apenas “chori”, uma versão uruguaia do cachorro-quente e do pão com linguiça. Virei cliente assídua de um trailer que vendia a iguaria próximo à Praça Fabini. A combinação de pão, linguiça assada fresca (nem defumada, nem curada) e um molho de chimichurri é simplesmente deliciosa! Outra experiência gastronômica digna de nota vivida em Montevidéu foi o restaurante especializado em comida italiana, Fellini . Não sei bem se eles são uma rede de restaurantes, mas o que eu fui fica no bairro de Pocitos. O ambiente é agradável, a decoração tem ares de casa, o que cria um clima de aconchego e acolhimento bem característico. Pude desfrutar de uma massa deliciosa acompanhada por um bom vinho uruguaio.
Quem for se aventurar pelo centro histórico deve passar pela “Puerta de la ciudadela”, único fragmento preservado da antiga muralha construída pelos espanhóis no século XVIII para proteger a cidade de invasões. O monumento se localiza na Praça da Independência. Ao redor da qual também fica o Palácio Salvo, cartão postal de Montevidéu. O prédio (comercial e residencial) dispõe de visitas guiadas que contam sua história e curiosidades, além de possibilitar uma vista privilegiada da Praça da Independência. Conhecer o Teatro Solís, o Palácio Salvo e o Museu de Arte Pré-Colombiana e Indígena já são para mim, três ótimos motivos para um retorno no futuro.
(Fonte: Patrick Bange)
Um dos aspectos que mais despertou a minha atenção desde o início foi a arquitetura de Montevidéu. Algumas construções se assemelham a pequenos castelos que aparecem com frequência sobretudo no bairro Prado, porção da cidade mais afastada do centro, onde fica o Jardim Botânico e o “Rosedal”. Pegamos um ônibus do centro até essa região, que, nas origens da cidade, abrigava casas de veraneio. Com o passar do tempo, essas casas foram se tornando residências fixas de famílias que buscavam fugir dos acontecimentos da guerra, da cólera e da febre amarela. Assim surgiram várias quintas, construções imponentes cercadas por vastas áreas verdes. Hoje o bairro apresenta quatro diferentes circuitos turísticos que te direcionam a museus, jardins, igrejas, monumentos, e até uma galeria de fotos ao ar livre.
(Fonte: Patrick Bange)
Colônia do Sacramento
Outra alternativa interessante para quem passa alguns dias em Montevidéu é visitar Punta del Este e/ou Colônia do Sacramento. Optamos por conhecer a segunda. Saímos bem cedo do hotel em direção ao terminal Tres Cruces, localizado no shopping e bairro de mesmo nome. A viagem dura em média três horas. A cidade, que foi alvo de intensas disputas entre espanhóis e portugueses, é uma verdadeira preciosidade, não por acaso foi eleita patrimônio cultural e natural da humanidade pela UNESCO. Colônia é a única cidade uruguaia de colonização portuguesa. Às margens do Rio da Prata, o centro histórico encanta os visitantes com suas casas, ruas, ruínas, restaurantes, bares, lojas de artesanato e sorveterias. E como se todos esses fatores não fossem suficientes, há ainda a possibilidade de viajar de barco até Buenos Aires. A travessia dura menos de uma hora.Colônia merece um post à parte, impossível falar sobre ela “en passant” sem cometer alguma injustiça, por isso me limito a deixar algumas fotos como registro desse dia incrível:
(Fonte: Patrick Bange)
Versos
De volta ao Brasil, mais de um ano depois da viagem, movida por um dos desenhos de Troche, arrisquei os versos:
via láctea
A Gervasio Troche e seus Dibujos invisibles
Na página branca de um livro
comprado longe,
em outra época, com outras companhias,
reconheço um sussurro:
“Un tarrito de tinta, un pincelito y agua”
Dormimos
equilibrados na corda que balança – e para –
Ao redor desse sono, astros
escuridão, vazio infinito, descanso
das cores adormecidas nos olhos
fechados
Sonhamos
um sonho longínquo (ou próximo)
ainda de olhos fechados
(ou, quem sabe, abertos)
Deitados, equilibrados na corda que corre
(chamada tempo)
Ao redor do sonho
que envolve as pernas e braços
dobrados,
nebulosa de estrelas, pontos de luz,
combinação cintilante de cores:
cometas de rastros fulgurantes.
(tinta preta no papel branco)
Dormimos
atentos à queda iminente.
Sonhamos diante de um abismo
belo
Cabe aprender a povoar
de estrelas
o espaço
de um passo no chão.
Autora: Sofia Glória
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